de Celso Calheiros
A caatinga pode ou não ser manejada com sustentabilidade?
Matriz energética e consenso não costumam andar juntos. O debate pode esquentar ainda mais quando se trata do polo gesseiro do Sertão do Araripe, onde indústria, ONGs e governo se colocam de um lado e acadêmicos, do outro. No centro da discussão está a lenha obtida no único bioma exclusivamente brasileiro, a caatinga.
O primeiro grupo advoga pelo manejo florestal que obedeça a regras rígidas e abasteça calcinadoras de gipsita. A outra turma alerta que não existe estudo, nem é eficiente derrubar-se a mata branca para fazer gesso.
O polo gesseiro fica no Araripe e está praticamente no coração da caatinga. É aquela região mais ao interior de Pernambuco, próxima do sul do Piauí e sul do Ceará. Não é mera coincidência estar lá a área mais degrada do bioma. A produção de gesso, que abastece 95% do que é consumido no país, é apontada como responsável pela abertura de clarões na mata.
A região concentra jazidas que exigem pouco para extração da gipsita. O minério branco só precisa passar pelos fornos das 139 calcinadoras para se transformar em gesso. Esse processo, que na maioria das vezes utiliza a vegetação da caatinga como combustível, é responsável por uma taxa de desmatamento alta.
Dados da Agência Estadual de Meio Ambiente de Pernambuco apontam que para a produção de 1,3 milhão de toneladas de gesso no Sertão do Araripe são necessários 1 milhão de metros cúbicos de lenha. A participação dos recursos florestais para produção desta energia chega a 93% (o restante vem da poda de cajueiros cearenses). A taxa é elevada mesmo para a região conhecida pela ausência de recursos hídricos e oferta de eletricidade limitada. Em todo semiárido, 40% da matriz energética vem da lenha, de acordo com o Ibama.
O ecologista Frans Pareyn, da entidade não-governamental Associação das Plantas do Nordeste (APN), e o analista ambiental Francisco Barreto Campello, do Ibama, garantem que o problema não é o uso do bioma – o desastre ambiental se dá pela falta de manejo.
O professor de ecologia e botânica José Alves Siqueira, da Universidade do Vale do São Francisco (Univasf) e diretor do Centro de Referência para Recuperação de Áreas Degradadas da Caatinga (Crad), discorda do manejo florestal do bioma. “Não existe base científica nestes modelos. Eles são especulativos”. Doutor em biologia vegetal, Siqueira afirma que a caatinga é mais delicada do que se supõe e que os planos de uso da mata como matriz energética não levam em consideração as espécies herbáceas e arbustivas, que são parte da riqueza da região.
A supervisora da área de manejo florestal do departamento de Ciência Florestal da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE), Isabelle Meunier, argumenta que o manejo não está em questão. Se debate a oportunidade de se sustentar um polo industrial com a caatinga. “Não conheço nenhuma técnica capaz de atender uma demanda crescente sem oferecer produtividade crescente. Demanda crescente e produtividade decrescente geram colapso. Ecologista militante, Isabelle faz um adendo. “Falo como acadêmica, não como ambientalista”.
O mesmo raciocínio utiliza Aldemir Barboza, doutora em geografia e professora de meio ambiente da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Ela afirma que a lenha da caatinga, em especial no Araripe, não pode ser considerada um recurso renovável porque os índices de consumo superam a sua capacidade de recomposição. “Devem-se buscar alternativas sustentáveis para as atividades que demandam uma grande quantidade de energia”.
Mata branca: manejo tradicional
A caatinga tem seu nome a partir das palavras que em tupi querem dizer mata branca, possui fauna e flora características, mas é muito pouco estudada. Sua aparência de mata seca de aparência morta, por exemplo, esconde uma astúcia vegetal. As plantas guardam energia para exibir o seu verde apenas para quando a água vem. E quando chove, a paisagem muda.
A estratégia para a preservação da cobertura florestal da região com apoio da indústria do gesso, agência ambiental pernambucana, Ibama e APN é peculiar. Parte do incentivo ao manejo da mata, com técnicas de corte que mantêm o toco e rodízio de áreas de 10 a 15 anos. Francisco Barreto Campello, do Ibama, observa que, desde os índios, o regime de produção agrícola no Araripe é baseado no rodízio de terras (pousio), que consiste na derrubada da mata, queima da madeira e, em seguida, o cultivo. “Isso cria uma espécie de revezamento das áreas para produção, em um manejo cíclico de solo onde a vegetação cumpre o papel de revigoramento da terra”, explica.
Como os solos bons para a agricultura são poucos, o que ocorre é uma rotação destas áreas. Deste jeito, a forma do agricultor sertanejo trabalhar a terra gera um excedente de lenha nativa a cada ciclo. Frans Pareyn, da APN, defende o raciocínio. “Se houver manejo, teremos uma atividade sustentável e economicamente viável”. Ele lembra outra vantagem. “O manejo florestal anula a emissão de carbono na atmosfera”, uma vez que a mata cortada estará sendo replantada periodicamente. “E vai gerar empregos, porque a coleta dessa lenha é feita no período de estiagem, quando as oportunidades de trabalho na região são menores”.
A demanda energética total do Araripe é de 2,4 milhões de metros cúbicos por ano, de acordo com dados do Ministério do Meio Ambiente e governos do Ceará e de Pernambuco. A área necessária para atender esta necessidade, de forma sustentável, é de 220 mil ha, considerando 14.700 ha por ano, em um ciclo vegetativo de 15 anos para regeneração, conforme dados da Rede de Manejo Florestal da Caatinga. A região do Araripe possui 1,4 milhão de ha de área potencial para uso sustentável.
Concorre com os agricultores que buscam lucro nesta atividade a pirataria. O maior inimigo do manejo é o preço da lenha irregular. Barreto Campello conta que há épocas em que a oferta de produto ilegal ultrapassa a demanda. Os prejuízos vão além das contas e dos cifrões. A madeira retirada de forma irregular queima o solo, arranca os tocos dos troncos, não repõe a cobertura vegetal e se torna emissora de carbono. A desertificação é a etapa seguinte.
Madeira ilegalExistem apenas 22 planos de manejo aprovados para uma área de 10,7 mil ha e só 12 funcionam. A produção não ultrapassa os 200 mil metros st/ano, inferior a 10% da necessidade dos fornos. O comércio ilegal e os clarões de área queimada no meio da caatinga respondem pelo resto da conta.
O presidente do Sindicato da Indústria do Gesso de Pernambuco (Sindugesso), Josias Inojosa Filho, estima que menos de 50% do setor compra madeira legal e 5% utiliza derivados de petróleo na calcinação da gipsita. O líder empresarial pede mais fiscalização. “É a única forma de a concorrência ser leal”.
O chefe de fiscalização do Ibama em Pernambuco, Leslie Tavares, garante a sua parte. Desde que focou no Araripe, divide as operações em dois tempos. No primeiro momento, autuou e fechou 56 das 139 calcinadoras de gesso. Considera esta uma fase educativa para que os empresários saibam quais os documentos necessários e conheçam o rigor da lei. Agora, realiza o trabalho de monitoramento, checando a consistência das informações contidas no Documento de Origem Florestal (DOF) em relação com a quantidade de gesso produzido, considerando a eficiência do forno industrial. “É um trabalho semelhante ao da fiscalização da Receita Federal”. Esta atividade não descarta as visitas inesperadas. Quando realizou a fase dois, fechou três beneficiadoras de gesso reincidentes. “Espero que essas empresas não voltem a funcionar”.
O projeto Conservação e Uso Sustentável da Caatinga realiza ações que têm como meta o uso sustentável da biodiversidade e da eficiência energética, conta Francisco Barreto Campello, responsável pela iniciativa. Parte do seu trabalho é convencer as indústrias do gesso a manter sua matriz energética com a lenha sem agressão ambiental, com inclusão social e sustentabilidade. Basta que a madeira seja certificada.
*Celso Calheiros é jornalista em Pernambuco
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